Transtorno do final de ano 

Ao longo do ano passamos por adversidades que em muito das vezes necessitam serem repensadas, que em muito das vezes acabam por passar por aquilo que chamamos de “luto” – processo que possibilita que haja vida após uma perda significativa. Trabalho de elaboração.
Todo luto carrega em si diversas características próprias de sua cultura: velar um ente querido através de signos religiosos, ritos que facilitam a passagem desse que se foi para um outro mundo, risadas altas para simbolizar a vida plena que foi vivida, caixões personalizados, lapides gigantes e por que não… Pular as sete ondas, brindar a virada, abraçar o “familiar” sabendo que o estranho mora no dia seguinte. De repente, tudo é festa?

“Foi a consciência da fragilidade da vida, do quanto tudo é provisório e instável, que impulsionou os humanos em direção à cultura, mas essa relação entre a vida pensada como natureza, e a cultura no sentido de ação, de intervenção no mundo, sempre foi difícil. […] A cultura é definida pelo modo como lida com o sofrimento.” (MOSÉ, 2019)

No final do ano, os profissionais de saúde mental são inundados por pacientes com sofrimento, muito deles que estavam até então estáveis apresentam diversas questões que são da ordem da implicância. “O que o ano que vem será?” E talvez a pergunta mais importante “O que farei de mim no próximo ano?”. Aqui, com essa questão existencial, as faixas etárias se conectam, pois a feitura de si mesmo é constante.
Aspectos da modernidade influenciam diretamente a formação desses sofrimentos, como a vida virtualizada que fornece material suficiente para brincar com as fantasias ideais de muitas pessoas. Famílias perfeitas, árvores de natal bem iluminadas, uma virada de ano vendo uma queima de fogos incríveis e tudo isso capturado e divulgado, a grande cena eternizada e os espectadores como voyeuristas gozam.
Para além (ou aquém) das relações de classes e o imperativo da felicidade encontramos aqueles desfiliados, sofrendo do que Freud já mostrava, as relações fragilizadas. Mosé (2019) deixa claro que a forma como nos relacionamos com a vida não gera apenas uma crise climática, mas uma exaustão humana.

A categorização do sofrimento como fenômeno contemporâneo que diluiu o ser humano e suas experiencias existenciais a uma crescente lista de classificação minimizam o individuo na sua possibilidade de articulação. Dentro de algum cenário de hiperexposição, todo comportamento constitui característica nosológica e nas redes percebemos aqueles que selecionam para si uma patologia amiga, signo de como se orientará a partir dali. Tal signo dialoga com um sofrimento social, a impossibilidade de fazer liga e perceber-se como múltiplo. No enrijecimento das condições propícias de desenvolvimento pleno diante dos cenários sociais, a vida se apequena e perde força. É claro que aqui não desconsideramos os importantes avanços técnico científicos em relação a promoção da qualidade de vida, a critica se orienta em outro sentido, no que foi feito da vida!

                                                                                    “O trágico é a falta de fundamento de tudo: falta de verdades, certezas, a       instabilidade com relação ao futuro, a doença, a dor, a velhice, o abismo da morte.” (MOSÉ, 1019)

Mas é possível recuperar na radicalidade do trágico naquilo que é pilar constitucional de uma vida pulsante: A instabilidade. Não vanglorio toda queda livre, a dor, o sofrimento, a tristeza e as mazelas humanas, mas não as desumanizo, é preciso reapossar o humano do que é humano, criar uma contracorrente dos imperativos viciados de uma cultura doente e egóica e nela nadar sem medo de se afogar, entrar na água sem o pânico de se molhar.
Reitero que esse texto tem o intuito de produzir vida, pois nas palavras de Mosé é preciso tecer uma relação com a vida de modo direto e corajoso, esse direcionamento produz pessoas alegres, maduras, que comemoram a vida que ainda possuem porque sabem que um dia faltará.

 

Por Eliel Lima – CRP 05/70226.

Citações:
Viviane Mosé – Nietzsche hoje.

A equipe de psicólogos do ConstruirPSI deseja a todos um feliz natal e um próspero ano novo.